quarta-feira, 10 de junho de 2009

O seu primeiro baile

Exatamente quando o baile começava Leila teria achado difícil dizer. Talvez o seu primeiro parceiro de verdade fosse o automóvel. Não importava que ela o dividisse com as Sheridans e seu irmão. Sentou-se atrás no seu próprio cantinho, e o descanso almofadado sobre o qual a sua mão repousava dava-lhe a sensação da manga do paletó de um jovem desconhecido; e ambos giravam, valsando ao longo de postes de iluminação e casas e cercas e árvores.
— Você realmente nunca esteve num baile antes, Leila? Mas, menina, isso é muito estranho ? — estrilavam as Sheridans.
— O nosso vizinho mais perto ficava a 15 milhas — disse Leila suavemente, abrindo e fechando o seu leque com delicadeza.
Ah céus, como era difícil ser indiferente como os outros! Ela tentava não sorrir demais, tentava não se importar. Mas cada detalhe era tão novo e empolgante... As angélicas de Meg, a grande presilha âmbar de Jose, a cabecinha morena de Laura, brotando da sua estola branca como uma flor através da neve. Ela se lembraria para sempre. Até teve uma pontada ao ver seu primo Laurie jogar fora os filetes de papel que ele tirava das abotoadoras das suas luvas novas. Gostaria de ter guardado aqueles filetes como lembrança, como uma recordação. Laurie inclinou-se para frente e apoiou a uma mão no joelho de Laura.
— Olha, querida, — ele disse — a terceira e a nona como sempre. Combinado?
Ah, que maravilha ter um irmão! Na sua excitação Leila sentia que se tivesse havido tempo, se não tivesse sido impossível, ela não teria conseguido conter as lágrimas por ser filha única, e por nenhum irmão jamais ter dito a ela “Combinado?”, nenhuma irmã jamais diria, como Meg dizia a Jose naquele momento:
— Nunca vi o seu cabelo ficar tão bem, preso, quanto hoje!
Mas, claro, não havia tempo. Eles já tinha chegado no salão de baile, havia automóveis à frente e atrás deles. A rua resplandecia margeada dos dois lados por luzes que pareciam ventiladores, na calçada casais felizes pareciam flutuar, sapatinhos de cetim perseguiam-se como passarinhos.
— Fique perto de mim, Leila, você vai se perder — disse Laura.
— Vamos, meninas, vamos atravessar pelo meio — disse Laurie.
Leila pôs dois dedos sobre a capa de veludo cor-de-rosa de Laura, e de algum modo eles foram levados além do grandes lustre dourado, através do corredor, e empurradas para dentro da saleta em cuja porta se lia “Damas”. Aqui a multidão era tão grande que mal havia espaço para tirar as suas coisas, o barulho era ensurdecedor. Nas duas bancadas de cada lado havia grandes amontoados de agasalhos. Duas velhas de aventais brancos corriam para lá e para cá jogando novas braçadas. E todas forçavam para frente tentando chegar à pequena penteadeira lá no fundo.
Um grande bico de gás bruxuleava na saleta das damas. Ele não podia esperar, já estava a dançar. Quando a porta abriu novamente, e uma explosão de sons vindos do salão se fez ouvir, ele saltou quase até o teto.
Garotas morenas, garotas loiras ajeitavam os cabelos, e reatavam fitas, enfiavam lenços nos corpetes, alisavam luvas brancas como mármore. E como todas riam, parecia a Leila que todas eram adoráveis.
— Será que não há nenhum grampo? — gritou uma voz. — Que coisa! Não acho um único grampo.
— Empoar as minhas costas... será que há um anjo — gritou outra.
— Mas eu preciso de agulha e linha. Eu simplesmente desfiei milhas e milhas da franja/babado — lamentou uma terceira.
Em seguida:
— Passe adiante, passe adiante!
O cesto de palha com os carnês era lançado de mão em mão. Adoráveis carnezinhos em rosa e prata, com lápis cor-de-rosa e pompons fofinhos. Os dedos de Leila tremeram quando ela tirou um da cesta. Ela queria perguntar a alguém, “Também posso pegar um?” mas só teve tempo de ler: “Valsa 3. 'Two, Two in a Canoe.' Polca 4. 'Making the Feathers Fly'” quando Meg gritou:
— Pronta, leila? — e lá se foram as duas abrindo caminho aos empurrões através do corredor na direção das grandes portas duplas do salão de baile.
O baile não tinha começado ainda, a banda tinha parado de afinar, mas o barulho era tanto que parecia que quando ela de fato começasse a tocar não seria nunca ouvida. Colada a Meg, olhando por sobre o seu ombro, Leila teve a sensação de que até as tremulantes bandeirolas coloridas presas ao longo do teto estavam falando. Esqueceu completamente a sua timidez, esqueceu-se de que enquanto se vestia sentou-se na cama com um pé calçado e outro não e implorou à mãe que telefonasse às primas e dissesse que ela não poderia ir afinal. E o acesso de nostalgia que ela tivera de ficar sentada na varanda da sua abandonada casa no interior, à luz da lua, ouvindo os filhotes de coruja piarem “Toco cru. Toco cru”, deu lugar a um acesso de felicidade tão doce que mal se podia aguentar. Apertou o leque, e, contemplando longa e avidamente o soalho faiscante dourado, as azaleias, as luminárias, lá no fundo o tablado com o seu tapete vermelho e as suas cadeiras douradas e a banda num canto, pensou ofegante: "Que divino! Simplesmente divino!"
Todas as moças estavam agrupadas de um lado, os rapazes do outro, e as chaperones, vestidas de preto e estampando um sorriso tolo, caminhavam a passinhos cuidadosos pelo soalho encerado em direção ao tablado.
— Esta é minha priminha do interior, Leila. Sejam gentis com ela. Arrangem-lhe pares; ela está comigo — dizia Meg, indo de garota em garota.
Rostos estranhos sorriam para Leila ? doce e vagamente. Vozes estranhas respondiam “Claro, querida”. Mas Leila sentia que as moças não a estavam vendo realmente. Elas olhavam na direção dos rapazes. Por que eles não começavam? Estavam esperando o quê? Eles ficavam lá, alisando as luvas, passando a mão pelos cabelos engomados e sorrindo entre si. Então, totalmente de repente, como se tivessem acabado de decidir que aquilo era o que deviam fazer, os rapazes vieram deslizando pelo parquê. Houve um alvoroço de alegria entre as moças. Um homem alto e louro precipitou-se para Meg, arrebatou-lhe o carnê e rabiscou algo; Meg passou-o a Leila.
— Dar-me-ia o prazer? — Ele fez uma reverência e sorriu.
Então apareceu um rapaz moreno usando um monóculo, depois primo Laurie com um amigo, e Laura com um sujeitinho sardento cuja gravata estava torta. Em seguida surgiu um homem já bem velho ? gordo, com uma grande calva ? pegou o carnê de Leila e murmurou:
— Deixe-me ver, deixe-me ver... — e ficou um longo tempo comparando o seu carnê, que parecia tomado de nomes, com o de Leila. A coisa parecia dar-lhe tanto trabalho que Leila ficou com vergonha.
— Ah, por favor, não se incomode — disse ela ansiosa. Mas em vez de responder o gordo escreveu algo, e olhou novamente para ela:
— Onde é que já vi esse lindo rostinho antes? — disse ele com voz macia. — Será que vou conseguir me lembrar?
Naquele momento a banda começou a tocar; o gordo desapareceu. Foi arrastado por uma imensa onda de música que lambeu o soalho rebrilhante, quebrou os grupos em casais, espalhando-os a rodopiar...
Leila aprendera a dançar no colégio interno. Todo sábado à tarde as internas eram enfiadas num pequeno galpão feito de chapas de zinco onduladas onde Miss Eccles (de Londres) dava aulas à sua seleta classe de “escolhidas”. Mas a diferença entre aquele galpão que cheirava à poeira ? de paredes revestidas com faixas de chita, aquela pobre mulherzinha aterrada de chapeuzinho de veludo marrom com orelhas de coelho martelando o piano frio, Miss Eccles a cutucar os pés das meninas com uma varinha ?... a diferença entre aquele galpão e este salão era tão grande que Leila tinha certeza de que se seu par não aparecesse e ela tivesse de ficar ali ouvindo aquela música maravilhosa e vendo os outros deslizarem, flutuarem sobre o soalho dourado, ela iria no mínimo morrer, ou desmaiar, ou alçar os braços e voar através de uma daquelas janelas escuras que mostravam as estrelas.
— A nossa, eu acho ? — Disse alguém numa reverência, sorriu, e ofereceu-lhe o braço, ela não tinha de morrer afinal de contas. A mão desse alguém apertou-lhe a cintura, e ela saiu a flutuar como uma flor lançada num espelho d'água.
— O chão está ótimo, não está? — balbuciou uma voz branda perto do ouvido do seu ouvido.
— A gente escorrega que é uma beleza — disse ela.
— Perdão! — A voz branda pareceu surpresa. Leila repetiu a frase. E houve uma pausa mínima antes que a voz ecoasse:
— Oh, deveras! — e a fizesse rodopiar novamente.
Ele conduzia tão maravilhosamente bem. Essa era a grande diferença entre dançar com as meninas e dançar com os homens, Leila sentenciou. As garotas davam encontrões e pisavam umas nos pés das outras, a garota que fazia o cavalheiro sempre te apertava tanto.
As azaleias não eram mais flores separadas, eram bandeiras brancas e cor-de-rosa que passavam voando.
— Você foi à festa dos Bells na semana passada? — insistiu a voz. Soou cansada. Leila ficou imaginando se deveria perguntar se ele gostaria de parar.
— Não, este é o meu primeiro baile — disse ela.
O parceiro soltou uma risadinha pelas narinas.
— Ah, sei... — protestou ele.
— Sim, este é realmente o meu primeiro baile. — Leila foi bem enfática. E era tão aliviante poder dizer a alguém.
— Sabe, morei no interior a vida inteira, até agora...
Naquele momento a música parou, e eles foram se sentar em duas cadeiras junto da parede. Leila enfiou os pezinhos de cetim cor-de-rosa sob a cadeira e se abanou, enquanto assistia radiante aos outros casais que passavam e desapareciam através das portas vaivém.
— Está se divertindo, Leila? — perguntou Jose, balançando a cabeça dourada.
Laura passou e deu-lhe uma piscadela muito sutil, e Leila ficou a imaginar por um momento se ela já era gente grande afinal. O seu par de certo não falava muito. Tossiu, guardou o lenço, esticou o colete, tirou um fio minúsculo da manga. Mas não importava. Quase imediatamente a banda começou a tocar e o seu segundo par pareceu jorrar do teto.
— Nada mal o soalho — disse a nova voz. Sempre se começava pelo chão? E depois:
— Você esteve na festa dos Neaves na terça-feira?
E Leila explicou de novo. Talvez fosse um pouco estranho que os seus parceiros não demonstrassem muito interesse. Porque era emocionante. O seu primeiro baile! E aquilo era só o começo de tudo para ela. Parecia-lhe que nunca antes soubera o que a noite era realmente. Até então fora escura, silenciosa, freqüentemente linda ? e sim ? um tanto lúgubre. Solene. E nunca mais seria daquele jeito de novo ? ela se inaugurara lancinante.
— Quer um sorvete? — disse o par.
E eles atravessaram as portas vaivém, o corredor, e chegaram à copa. As suas bochechas ardiam, ela tinha uma sede ferrenha. Que lindos que ficavam os sorvetes nos pratinhos de vidro e que fria estava a colher glaceada... gelada também! E quando voltaram ao salão o gordo esperava por ela ao lado da porta. Ela ficou chocada novamente ao ver quão velho ele era, deveria era estar sobre o tablado com os pais e as mães. E quando Leila o comparou com os outros parceiros, ele pareceu malvestido. O colete estava amassado, faltava um botão numa luva, e o seu paletó parecia estar todo empoeirado de giz de alfaiate.
— Venha, senhorita — disse o gordo. Ele nem se deu ao trabalho de abraçá-la, eles se movimentavam tão suavemente que mais pareciam caminhar que dançar. Mas ele não disse uma única palavra sobre o soalho.
— É o seu primeiro baile, não é? — murmurou.
— Como o senhor sabia?
— Ah, — disse o gordo — vantagens da idade!
Ele ofegou de leve ao conduzi-la desviando de um casal desajeitado.
— Sabe, venho fazendo isto nos últimos trinta anos.
— Trinta anos? — exclamou Leila. Doze anos antes de ela ter nascido.
— É difícil de imaginar, não é? — disse o gordo, melancólico. Leila olhou para a sua calva, e sentiu muita pena dele.
— Acho maravilhoso ainda estar na ativa — disse ela gentilmente.
— Gentil da sua parte, senhorita — disse o gordo, e puxou-a um pouquinho mais para junto de si, e entoou, de lábios fechados, um compasso da valsa.
— Naturalmente, — continuou — no seu caso não espere que dure tanto tempo. Nã-não — disse o gordo — não tarda você vai estar sentada lá sobre o tablado, de vigia, no seu belo veludo negro. E estes lindos braços estarão curtos e gordos, e você vai marcar o compasso com um leque bem diferente — preto e de osso. — O gordo pareceu estremecer.
— E a senhorita terá um eterno sorriso nos lábios assim como aquelas pobres velhotas lá em cima, e há de apontar para a sua filha e contar à velha que se achar ao seu lado, a história de um sujeito horrendo que tentou beijar a menina no baile do clube. E o seu coração ficará magoado muito, muito magoado — o gordo apertou Leila ainda com mais força, como se na verdade tivesse pena daquele pobre coração — porque então ninguém mais vai querer beijar você. A senhorita há de dizer que é desagradável caminhar sobre estes soalhos encerados, desagradável e perigoso. Hein, “Mademoiselle” Pé de valsa? — concluiu o gordo brandamente.
Leila deu uma risadinha, embora não tivesse a menor vontade de rir. Será que... podia ser tudo verdade? Soava terrivelmente verdadeiro. Era este primeiro baile só o começo do seu último? Diante desse pensamento a música pareceu mudar, soava triste, muito triste, o crescendo de um suspiro profundo. Ah, como as coisas mudavam rápido! Por que a felicidade não durava para sempre? Para sempre não era tempo demais.
— Quero parar — disse ela com voz ofegante. O gordo a conduziu à porta.
— Não. — ela disse — Não vou sair. Não quero me sentar. Só quero ficar em pé aqui, obrigada.
Encostou-se na parede, sapateando, esticando as luvas e tentando sorrir. Mas lá no fundo uma menininha cobriu a cabeça com o avental, e soluçou. Por que ele tinha estragado tudo?
— Sabe... quero dizer — disse o gordo — você não deve me levar tão a sério, senhorita.
— Como se eu tivesse...! — disse Leila, sacudindo a cabeça morena e mordendo o lábio inferior...
Os casais desfilavam novamente. As portas vaivém batiam para lá e para cá. O mestre da banda anunciava uma nova canção. Mas Leila não queria dançar mais. Queria estar em casa, ou sentar-se na varanda e ouvir os filhotes de coruja. E ao olhar as estrelas através das janelas escuras, viu que tinham longos raios, que pareciam asas...
Mas agora começava uma música suave, relaxante e arrebatadora, e um jovem de cabelos encaracolados fez-lhe uma reverência. Ela teria de dançar, por pura delicadeza, até que pudesse encontrar Meg. Muito tesa caminhou até o centro, muito altiva colocou a sua mão sobre o braço do jovem. Mas em um minuto, em um giro, os seus pés deslizavam... As luzes, as azaleias, os vestidos, os faces rosadas, as cadeiras de veludo, tudo se tornou uma linda roda girante. E quando o seu próximo par a fez rodopiar ao encontro do homem gordo, que disse “Perdão”, ela sorriu para ele mais radiante que nunca. E nem mesmo o reconheceu.

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